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Sacrifício e Sacro Ofício

Sacrifício e Sacro Ofício 

 "Uma mesma ação, entretanto, pode ser um sacrifício ou um sacro ofício, depende de qual emoção subjaz ao ato. (...) Jesus não veio realizar sacrifício, mas manifestar o amor"

Claudia Moura Pierre

 

 

Dia desses vi uma mensagem na internet que afirmava: é impossível amor sem sacrifício. Creio que existe certa confusão entre estes dois conceitos (sacrifício e sacro ofício) e se faz necessário elucidar que ideia temos sobre sacrifício para verificar se há veracidade nesta frase de efeito.

Sacrifício está carregado de pesar e sofrimento. Quando retomamos os relatos bíblicos, vemos que o sacrifício acontece quando se vitimiza algum animal a fim de favorecer alguém ou alguma condição. Sacrifício supõe a perda de algo valioso e, também, a barganha: uma negociação em que se oferece algo para obter alguma coisa - de maior valor – em troca.

De que maneira então, amor estaria relacionado com sacrifício? Sendo assim compreendido, relação nenhuma. O que vem a ser amor? Na verdade, pouco sabemos, é por isto que confundimos sacrifício com amor. Amor é uma emoção e, como tal, é um modo de atuar. Segundo Humberto Maturana, emoções são domínios de ações. Sob determinada emoção, agimos de determinada maneira.

Nossas ações revelam nossas emoções e nossas emoções revelam nossas ações.

Supomos que o amor, tão cantado em verso e prosa, seja uma emoção que suscite, apenas, boas ações. Da forma como entendemos sacrifício, não é possível relacioná-lo com o amor, a não ser que seja para afirmar que sob a emoção do amor, o sacrifício é impossível.

Sacrifício é uma condensação da palavra sacro ofício. Mas, sacro ofício é uma atividade sagrada. A partir do amor, pode haver somente ações sagradas, divinas. Assim, sacro ofício é o próprio exercício do amor. Podemos, então, afirmar: não há amor sem sacro ofício.

Recordo-me de um episódio que me sensibilizou bastante. Meu pai e minha filha gostam muito de uma cocada cremosa. Quando restava apenas uma unidade, ele falou: ‘vou deixar pra minha neta, ela adora esta cocada’. Para mim, foi um ato de amor. Ele abdicou de algo a fim de proporcionar, à neta, algo que ela gostava. Mas isto não se deu a partir de um senso de perda, mas a partir de um senso de doação, de uma atitude amorosa na qual ele ficaria mais feliz em contribuir com a alegria dela, do que em se beneficiar sozinho daquele quitute.

Isto me faz recordar, também, de minha mãe e de meus tios que sempre visitam meus avós que moram em outra cidade e, para isto, deixam de ir a festas, de viajar e de realizar algumas atividades que apreciam para dar prioridade à assistência aos pais. Este também é um sacro ofício – uma ação oriunda do amor. Não uma troca que prende o outro numa dívida porque é favorecido, mas uma dádiva de si mesmo.

Uma mesma ação, entretanto, pode ser um sacrifício ou um sacro ofício – depende de qual emoção subjaz ao ato. Por exemplo, uma mãe pode deixar de fazer certas coisas em função dos filhos. Se a alegria dos filhos for sua própria alegria, trata-se de um sacro ofício. Neste caso, suas ações são escolhas nas quais, o que mais importa é proporcionar bem-estar à prole. Trata-se de uma atitude de amor. Desta forma, ela não se vitimiza, mas se alegra. Entretanto, abdicar de afazeres em função dos filhos pode ser um sacrifício – se, ao agir assim, ela o fizer a partir de um senso de privação.

Então, sobre Jesus, poderíamos afirmar que tudo o que fez foi a partir do amor, com a alegria de estar contribuindo para o bem-estar da humanidade. Seu ministério foi um sacro ofício. Seus atos são oriundos da plenitude, não da barganha.

Jesus afirma, no evangelho de João: não há maior amor do que este, aquele que dá a sua vida pelo irmão. Estou convicta de que esta afirmação tem sido mal interpretada. O amor é justamente esta doação de si mesmo em prol do outro, do irmão. Ele estava se referindo à dádiva da vida e não à morte. Esta dádiva de si mesmo acontece a partir do pleno amor, e não do sacrifício. Em nossas limitações acontece de, ao darmos tempo ou recursos a alguém, temos um sentimento de perda. Talvez este fato tenha originado uma distorção da ideia inicial e, por causa disto, confundimos sacrifício com sacro ofício.

Jesus não veio realizar sacrifício, mas manifestar o amor. Ele morre para a condição humana e ressuscita como Filho de Deus. Na condição de Filho de Deus, ele dá de Si mesmo, constante e eternamente, para os irmãos.

Quando atuamos fazendo sacrifícios, o fazemos com um senso de escassez, mas sendo plenitude, Jesus age a partir do transbordamento. Considero que no sacro ofício abdicamos de nós, não como uma perda, mas com o sentido de ganho, porque nos tornamos felizes com a felicidade do outro.


Claudia Moura Pierre é professora universitária e autora do livro Culpa, Cura e Relacionamento

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